Acidente da Voepass e o direito à desconexão do trabalho
Por Ricardo Calcini* e Leandro Bocchi de Moraes**
Infelizmente, no último dia 9, o país acompanhou de perto uma tragédia decorrente da queda de um avião que resultou em mortes de dezenas de pessoas. À vista disso, foi veiculada na imprensa que no mês de junho as condições de trabalho de pilotos da Voepass foram objeto de debates na Anac. Dentre as reclamações, um trabalhador relatou a intensa fadiga para o desempenho das suas atividades profissionais, além da existência de supostas condições precárias para o exercício de suas funções laborativas, assim como o desrespeito ao seu descanso assegurado em lei.
A partir do depoimento de tal trabalhador que aconteceu durante uma audiência pública da Agência Nacional de Aviação Civil, no qual foi mencionado existir aparente pressão por parte da empresa para o desempenho de mais horas de jornada, o Ministério Público do Trabalho deve investigar a possível lesão aos direitos sociais envolvendo os trabalhadores da companhia aérea, assim como as próprias questões em torno da segurança do meio ambiente de trabalho.
A empresa, em nota à imprensa, refutou as alegações, informando que cumpre corretamente a legislação brasileira. Em resposta à declaração, o MPT informou que fará a apuração da existência de eventuais irregularidades, e, por conseguinte, da responsabilização civil.
Dito isso, muitos são os questionamentos acerca da responsabilidade empresarial em situações em que não observadas as normas atinentes ao meio ambiente do trabalho, dentre elas o direito ao lazer e ao descanso: o que diz a legislação trabalhista sobre esses direitos? São direitos protegidos e garantidos pela Constituição? Em caso de desrespeito a tais normas, quais são as consequências jurídicas para as empresas? E, mais, qual é o atual posicionamento do Poder Judiciário acerca do tema?
Do ponto de vista normativo no Brasil, a Constituição, de um lado, dispõe em seus artigos 6º e 7º sobre os direitos sociais, sendo estes “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. Lado outro, o artigo 225 da Lei Maior assegura a todos um meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Do ponto de vista internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece em seu artigo 24 que todo ser humano deve ter respeitado o seu direito ao descanso e ao lazer, com uma limitação no que diz respeito à jornada de trabalho, além de ser assegurada a fruição de férias para que seja possível a recuperação de sua higidez física e mental.
De mais a mais, a Convenção 155 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil, dispõe sobre a segurança e a saúde dos trabalhadores e o meio ambiente do trabalho, tendo por objetivo a prevenção de acidentes e os danos à saúde que forem consequência do trabalho.
A propósito, o Código do Trabalho de Portugal, v.g., possui previsão expressa no sentido de que o empregador não deve atrapalhar o período de descanso do trabalhador, salvo em caso de situação de força maior.
Indubitavelmente, a empresa possui responsabilidades frente aos seus trabalhadores, de sorte que sendo constatada a conduta culposa ou dolosa, o dano e o nexo de causalidade, o empregador poderá ser responsabilizado, razão pela qual se torna imprescindível o respeito aos direitos humanos fundamentais, como também às normas de saúde e segurança do trabalho.
Aliás, impende destacar que se torna fundamental o cuidado com a prevenção, ou seja, as empresas devem adotar mecanismos e barreiras de precaução a fim de evitar a ocorrência de possíveis acidentes de trabalho ocasionados por condições precárias do meio ambiente laborativo. E, ainda, o direito do trabalho deve ser visto sob a ótica da prevenção, vale dizer, que tem por fim impedir os riscos ambientais e os riscos aos trabalhadores.
Nesse diapasão, oportunos são os ensinamentos de Maria José Giannella Cataldi: “No contexto atual da globalização de concorrência e comparações internacionais, bem como com um avanço tecnológico em velocidade recorde nas últimas décadas, os trabalhadores de maneira geral sejam chefes, engenheiros ou operadores estão passando por um aumento de sua carga de trabalho e por outras dificuldades decorrentes das políticas de redução da mão de obra. Quem continua no emprego tem que fazer mais e com um custo menor ou com menos recursos. Um desafio com repercussões ao nível da saúde dos indivíduos tais como: crises de estafa, estresse. Os trabalhadores estressados têm maiores dificuldades em se integrar ao mercado de trabalho. Estamos vivendo a época em que, sob a égide de uma sociedade moderna, os empregados cada vez mais vêm perdendo os seus direitos, renunciando inclusive, a direito de preservarem a sua saúde.”
A propósito, quando o trabalhador é submetido a jornadas exaustivas de trabalho, tal conduta pode ser entendida como um abuso do poder diretivo do empregador, em razão da restrição ao direito ao descanso e ao lazer. Nesse sentido, o Tribunal Superior do Trabalho já foi provocado a se manifestar, sendo que, na ocasião, ficou caracterizado o dano existencial, tendo em vista que a conduta praticada afrontou os direitos fundamentais do empregado.
Em seu voto, a ministra relatora ponderou: “O excesso de jornada de trabalho constitui uma das formas de “exploração do trabalho no modo de produção capitalista implementadas pelo neoliberalismo que compromete a vida do trabalhador, com a invasão de sua esfera privada e o comprometimento de seu tempo livre, prejudicando o exercício de outras atividades e o convívio familiar, podendo repercutir na vida de relações e no projeto de futuro dos indivíduos. Cabe ao Poder Judiciário contribuir como freio ao sistema, de maneira a assegurar condições dignas de trabalho e de vida” (LEMOS, Maria Cecilia de A. Monteiro. Dano existencial nas relações de trabalho intermitentes. São Paulo: LTr, 2020). A sujeição pessoal de um trabalhador a uma jornada de trabalho por 13 horas diárias e uma folga semanal, “impõe uma condição de disponibilidade ilimitada do tempo do empregado em favor do empregador, viola o direito a uma jornada de trabalho constitucional e pode acarretar danos ao seu projeto de vida e à sua vida de relações, os denominados “danos existenciais” (LEMOS, Maria Cecilia de A. Monteiro. Dano existencial nas relações de trabalho intermitentes. São Paulo: LTr, 2020).”
A partir do advento dos avanços tecnológicos, por muitas vezes a vida pessoal do trabalhador acaba se misturando com a vida profissional, seja pela facilidade de comunicação e controle, seja pela necessidade e alta demanda de trabalho, bastando apenas uma mensagem por aplicativo para que seja possível o contato imediato. Não são raras as vezes em que nos deparamos com as pessoas “conectadas” o tempo todo, inclusive nos momentos em que são destinados para repouso, alimentação, descanso e convívio social.
Em arremate, se antes havia uma preocupação em não misturar as questões pessoais com o trabalho, hoje, ao revés, é o trabalho quem invade cada vez mais a privacidade e a residência do trabalhador. Por essas razões é que se torna imprescindível não só a observância da legislação trabalhista, como também a criação de efetivas medidas preventivas e de precaução, tudo isso para que os trabalhadores possam desempenhar o seu labor em um ambiente seguro e saudável, evitando-se, por corolário lógico, infortúnios causados pelo excesso de jornada, fadiga e exaustão.
*Ricardo Calcini é consultor trabalhista e sócio fundador do Calcini Advogados.
**Leandro Bocchi de Moares é advogado Calcini Advogados e especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela EPD.
Fonte: Calcini Advogados
Foto: Adriano Moura Buzeli – Revista Piloto Ribeirão
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